ENTREVISTA: “A ausência do Estado tem acelerado muito mais a mortalidade nos territórios indígenas”

Uma das organizadoras da Marcha das Mulheres Indígenas, Celia Xakriabá destaca as ameaças que a comunidade tem sofrido durante a pandemia de coronavírus e alerta para o perigo de equiparar a atuação de missões religiosas a de profissionais de saúde nestes locais

Por Vitória Régia da Silva*

Coronavírus de um lado e invasores e grileiros de outro. Neste cenário de pandemia global de covid-19, os povos indígenas travam uma batalha contra a proliferação do vírus nos territórios ao mesmo tempo em que sofrem com as invasões e precisam continuar a lutar pelo direito à terra. Dependentes de um sistema de saúde que tem problemas de acesso e articulação, a população teme um genocídio.

Segundo o Boletim Epidemiológico do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde, atualizado em 27 de maio, são 1005 casos confirmados de covid-19 e 44 óbitos de indígenas. A região do Alto Rio Solimões é a que concentra a maior quantidade de casos confirmados, 309 até o momento. “No meio dessa pandemia, precisamos reinventar o calendário, porque podemos mudar, o que não podemos perder é a oportunidade de defender a vida”, alerta a assessora parlamentar Celia Xakriabá.

Professora ativista indígena do povo Xakriabá em Minas Gerais e a primeira do seu povo a ter mestrado, Xakriabá é uma das organizadoras da Marcha de Mulheres indígenas. Em entrevista a Gênero e Número, Xakriabá destaca as graves ameaças que a população indígena tem sofrido durante a pandemia, comenta a importância da aprovação do PL 1142/2020, que trata de medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da covid-19 nos territórios indígenas, e chama a atenção para a ausência de medidas do Estado. “É bem contraditório porque, desde o início da pandemia, a hashtag tem sido a luta por ficar em casa. Enquanto a nossa luta sempre foi pelo território, saúde e educação. No momento em que precisamos ficar em casa, o que está sendo sequestrado e negociado é exatamente esse nosso território. Então, não tem como ficar só em casa, ou só na aldeia, quando a nossa morada está sendo ameaçada”, destaca.

Confira trechos a seguir:

Qual o cenário da covid-19 nas comunidades indígenas?

É um desafio muito grande. Já faz mais de 80 dias da nossa quarentena no território Xakriabá, e a preocupação é coletiva. Não nos preocupamos só com a nossa família, porque o isolamento social é diferente, porque é por núcleo familiar. E tem sido um desafio acompanhar outras famílias que estão em uma situação maior de vulnerabilidade. O nosso território conta com cerca de 12 mil indígenas e nove entradas. Desde o dia 19 de março, as lideranças Xakriabas decretaram o fechamento dessas entradas, com faixas, e no final de abril, decretaram o fechamento com monitoramento presencial constante. É um desafio muito grande manter essa presença e monitoramento. As pessoas não medem que, antes da chegada do vírus, já existiam outros adoecimentos como a fome; o vírus é um acelerador das nossas preocupações e necessidades. Nos preocupamos muito como nossa população vai estar pós-pandemia.

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Essa guerra humanitária não significa o extermínio da totalidade da população brasileira ou da humanidade, mas pode significar o extermínio da totalidade de muitos povo indígenas.

As ações do Estado têm sido suficientes para impedir a proliferação do vírus nas comunidades?

Estamos traçando algumas estratégias importantes junto com as lideranças e participação da juventude. A única ação do Estado é a genocida. Na verdade, no que se trata do governo federal, não temos nossas demandas atendidas. Semana passada estava em votação o Plano Emergencial para indígenas e quilombolas, e fica escancarada qual a posição do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas, porque desde que começou o aceleramento da pandemia não se tomou medidas efetivas relacionadas aos territórios indígenas.

As pessoas e o Estado brasileiro não podem justificar dizendo que é apenas uma fatalidade, uma vez que a ausência do Estado tem acelerado muito mais a mortalidade nos territórios indígenas. No caso de Minas Gerais, o estado decretou a volta de grande parte do comércio e a volta às aulas. Assim como é a realidade em outros estados, a população indígena vem sendo pressionada para o retorno do funcionamento da educação, por meio de uma ferramenta superexcludente que é o online, a teleaula, sendo que na verdade estamos em um momento de “terra aula”. Nesse momento, quem tem mais condições de converter toda essa vivência em um plano de vida e de ensino e aprendizagem são os povos indígenas, porque já fazemos isso dentro da nossa proposta escolar indígena. No meio dessa pandemia, precisamos reinventar o calendário, porque podemos mudar, o que não podemos perder é a oportunidade de defender a vida.

Segundo o Ministério da Saúde, são 1005 casos confirmados de covid-19 e 44 óbitos. Esses números são bem diferentes dos dados de  mortos e contaminados pelo movimento indígena. Por que existe essa discrepância?

Nesse controle e acompanhamento que temos feito, a letalidade no Brasil é em torno de 6,3%, enquanto nas comunidades indígenas cresceu em torno de 70%, sendo que a letalidade hoje oscila a cada dia e fica em torno de 11,4%. São 147 mortes, 71 povos atingidos e 1350 indígenas infectados pela covid-19. São números muito altos. Isso significa que não somos 1% da população brasileira, mas já somos 11,4% da letalidade do vírus. Por isso, temos falado que essa guerra humanitária não significa o extermínio da totalidade da população brasileira ou da humanidade, mas pode significar o extermínio da totalidade de muitos povo indígenas. Isso é uma ameaça, porque significa que se o Estado brasileiro não tomar medidas de contingenciamento, como no caso do povo Cocama, que concentra cerca de 50 dos 147 óbitos, pode haver um extermínio desse povo. A proliferação do vírus é muito acelerada e nós vivemos esse medo dentro dos territórios indígenas, principalmente porque é um desafio para nós que somos povos de costume coletivo pensarmos o isolamento social.

As mulheres Xakriabá têm fabricado máscaras para ser distribuída em todo o território |Foto: Arquivo Pessoal

O Projeto de Lei 1142/2020 dispõe sobre medidas urgentíssimas de apoio aos povos indígenas em razão do novo coronavírus. Qual a importância de sua aprovação?

É muito importante. Nós acompanhamos toda a construção, partindo do processo de consulta das organizações, então, é inaceitável que já faz quase 80 dias para ser aprovado, que tenha essa morosidade. Por isso vemos que é um desvio de conduta, por parte do Ministério da Saúde, quando nega e tenta até barrar ações humanitárias dentro de territórios indígenas, que é o apoio que recebemos fora do apoio institucional. Esse projeto de lei era bem escrito, foi feito com participação da nossa deputada Joenia Wapichama (REDE/RR), e houve toda uma discussão para ela ser relatora. De última hora, no apagar das luzes, eles surpreendem, pela bancada do governo, com um projeto substitutivo que é uma armadilha.

Foram incluídas missões religiosas nos artigos 13 e 15 deste projeto de lei, igualando a atuação de religiosos a de profissionais de saúde no acesso às comunidades. Qual seria o impacto dessa inclusão para os povos indígenas?

Nesse projeto substitutivo foram incluídas as missões religiosas. E isso é uma estratégia, a mesma que foi feita no passado e que foi responsável por várias mortes indígenas. Na região norte, os povos de difícil acesso e isolados são os que estão mais ameaçados com essa proposta porque o vírus chegou lá exatamente por isso, por conta de missionários. Isso é uma armadilha também porque libera o acesso dessa bancada religiosa, que historicamente tem sido nossa inimiga no Congresso Nacional. Não se trata de uma simples alteração, isso tem um plano de fundo muito profundo e pode ter consequências sérias. E isso é contraditório porque representa tudo que lutamos contra. Dentro de outros projetos de lei eu nunca vi ser aprovado um artigo que contemple esse tipo de ação, ainda mais comparando religiosos com profissionais da saúde. Então, para nós isso é uma armadilha muito grande e uma estratégia dos interlocutores da ponta do que representa esse governo.

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No momento que precisamos ficar em casa, o que está sendo sequestrado e negociado é exatamente esse nosso território. Então, não tem como ficar só em casa, ou só na aldeia, quando a nossa morada está sendo ameaçada.

Durante a pandemia, os garimpos ilegais e invasões dos territórios indígenas não pararam. Como tem sido a articulação para impedir essas invasões?

Além de ter que enfrentar o vírus da covid-19, temos que enfrentar um constante vírus, que é um sistemático e genocida. Isso foi bem representado na semana passada, quando além de enfrentar e fazer a defesa do PL 1142/2020, tínhamos que gastar energia contra o PL do Garimpo (PL 191/2020), que pretende anistiar todos os crimes de invasão. Isso seria premiar o crime de grilagem, e sem nenhum esforço da parte deles, já que antes eles forjavam documentos, e agora estarão autorizados pelo Estado brasileiro. Como diz o Ministro do Meio Ambiente, a ideia é deixar a boiada passar e mudar regras enquanto a atenção da mídia está voltada para a covid-19. No início de abril, o território Xakriabá foi pego de surpresa com uma operação policial super arbitrária que coloca em risco toda a população, já que já estávamos em isolamento social, e percebemos uma articulação desse campo da entrada e invasão desses territórios para colocar em risco nossa própria população.

O que nós temos feito é uma grande mobilização, e isso tem surtido impacto, tanto é que o PL da grilagem não voltou à pauta, e isso  tem sido uma resposta a nossa capacidade de mobilização nas telas e terras indígenas, onde conseguimos reinventar essa nossa potência da luta. A estratégia deles de votar tudo isso nesse momento mostra como eles têm medo da nossa presença em Brasília, então, aproveitam que não podemos estar lá nos manifestando e fazem isso na surdida, pensando que não iria ter uma reação.

Na terça-feira (26), para tirar o fôlego, as terras indígenas entraram em pauta no Supremo para tentar discutir o marco temporal, que tentam aplicar para todos os processos de demarcação dos territórios indígenas dizendo que só vão considerar territórios indígenas aquelas que foram demarcadas até a promulgação da Constituinte em 198. O que coloca todos os territórios demarcados em risco. É bem contraditório porque, desde o início da pandemia, a hashtag tem sido a luta por ficar em casa. Enquanto a nossa luta sempre foi pelo território, saúde e educação. No momento que precisamos ficar em casa, o que está sendo sequestrado e negociado é exatamente esse nosso território. Então, não tem como ficar só em casa, ou só na aldeia, quando a nossa morada está sendo ameaçada.

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A proliferação do vírus é muito acelerada e nós vivemos esse medo dentro dos territórios indígenas, principalmente porque é um desafio para nós que somos povos de costume coletivo pensarmos o isolamento social.

Como a sociedade civil pode se organizar para ajudar a combater o novo coronavírus em terras indígenas?

A humanidade e a população brasileira precisam entender a importância de estar junto com os povos indígenas contra o PL da grilagem, pela permanência do parecer 001 da AGU e pelo Plano de contingência neste momento. Porque quem sobreviver a essa guerra respiratória e planetária vai ter que enfrentar um segundo momento, que é a guerra resultada das mudanças climáticas. E se não tiver mais povos indígenas, vão ter matado o principal princípio ativo.

Dentro das ações da própria população indígena no combate à covid-19, as mulheres Xakriabá têm contribuído muito porque conseguimos mobilizar 60 mulheres para fazer, neste momento, toda a fabricação de máscara para ser distribuída ao território e para ajudar nas barreiras de monitoramento.

*Vitória Régia é repórter da Gênero e Número

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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