Anuário traz o primeiro levantamento de violência contra LGBT+ na segurança pública| Foto: Patricia Richter/Tem Que Ter

Escassez de dados expõe invisibilização da violência contra população LGBT+ na segurança pública

Registros de homicídio doloso cresceram 10% entre 2017 e 2018, segundo Anuário Brasileiro da Segurança Pública, porém mais da metade dos estados brasileiros não informaram os números sobre a violência contra a comunidade

Vitória Régia da Silva

  • Discrepância entre dados da segurança e da saúde

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  • Criminalização da LGBTfobia e transparência

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A escassez de dados sobre violência contra a população LGBT+ ficou explícita no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, divulgado semana passada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Este ano, a publicação apresentou o primeiro levantamento nacional de números oficiais sobre violência LGBTfóbica, realizado a partir de pedidos fundamentados na Lei de Acesso à Informação junto às polícias estaduais, responsáveis pelo registro dos crimes. Porém, menos da metade dos estados apresentaram os dados referentes a homicídios, estupro e lesão corporal dolosa. 

“No começo do ano, olhamos para os dados da saúde pública, que era o que tínhamos disponível naquele momento, e ficou evidente que existia uma grande defasagem já no Ministério da Saúde, explicitando ainda mais a necessidade de tratar desse assunto. Quando temos um caso de ausência de dados como esse, existe um dilema: pode-se publicar com essa defasagem ou não publicar, justamente devido a isso. Escolhemos publicar, porque queríamos denunciar, lutar pelo reconhecimento dessa injustiça e tentar promover um aumento de transparência”, afirma Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Apenas dez dos 26 estados brasileiros apresentaram números referentes a registros de homicídios; 11 trouxeram dados sobre estupro e nove sobre lesão corporal dolosa. Todos os estados do Norte, com exceção de Tocantins, não responderam ao pedido de informação e a maioria dos estados responderam apenas parte da solicitação. Acre, Amapá, Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima e Sergipe foram os estados que não responderam a nenhum dos pedidos de informação. 

Para Thiago Amparo, professor de Direitos Humanos, Diversidade e Antidiscriminação da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, a escassez de dados é sintoma da falta da preocupação em colher essa informação nos boletins de ocorrência. “Sem essas informações não é possível coletar os dados separadamente para produção de estatísticas. Muitas vezes, a vítima tem receio de relatar que certo crime teve motivação LGBTfóbica por medo de ser maltratada na delegacia ou, mesmo quando relata essa motivação, essa informação não é incluída no boletim”, conta. 

 

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Discrepância entre dados da segurança e da saúde

Mesmo com a escassez de números, o Anuário traz um levantamento nacional inédito de dados oficiais de segurança pública sobre violência contra a população LGBT+. Dez estados contabilizaram 99 homicídios dolosos contra população LGBT+ em 2017 e 109 no ano passado, o que representa um aumento de 10%. No caso de lesão corporal dolosa, o aumento foi mais tímido, passando de 704 casos em 2017 para 713 em 2018. 

“Mesmo com a ressalva de que não se pode projetar os dados para todos os estados que não responderam, somente a soma de casos relatados em dez estados já dão conta de 109 casos de homicídio. O Grupo Gay da Bahia [que faz o levantamento com base em notícias da imprensa] reportou 320 casos em 26 estados. Logo, os dados desses dez estados já projetam o Brasil como um dos mais violentos para a população LGBT+. Além disso, quando olhamos alguns estados específicos, os números do Grupo Gay e do Anuário não divergem tanto, como é o caso da Bahia, por exemplo”, explica Amparo, que analisou os dados em artigo no relatório. 

Os números apresentados estão em sintonia com levantamentos já realizados pela Gênero e Número. A partir de dados do Ministério da Saúde, reportagem de agosto mostrou que, em média, 11 pessoas trans foram agredidas por dia em 2017. Houve também um crescimento significativo nos casos de violência registrados nos últimos anos: agressões contra a população trans aumentaram mais de 800%, passando de 494 notificações em 2014 para 4.137 em 2017. 

Os registros de estupro contra a população LGBT+ sofreram uma pequena queda de 3,5% entre 2017 e 2018, passando de 86 para 83 casos registrados pela polícia, segundo o Anuário. No entanto, é evidente a subnotificação dos casos, já que o Ministério da Saúde registrou só em 2017 um total de 2.379 estupros de mulheres lésbicas (média de seis por dia)

Criminalização da LGBTfobia e transparência

Em junho deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pelo enquadramento da LGBTfobia na Lei  7716/89 (conhecida como Lei do Racismo), que discorre sobre os crimes por preconceito e discriminação, até que o Congresso aprove uma legislação sobre o tema.

Amparo acredita que, após a decisão do STF, o cenário de escassez de números sofra alguma modificação, porque com a criminalização será possível ter dados dos episódios de discriminação que correspondem aos crimes descritos na Lei 7716/89; nos casos de homicídio contra LGBTs por orientação sexual ou identidade de gênero, a delegacia deve classificar como “homicídio qualificado por motivo torpe”, de acordo com a decisão do Supremo.

Ao contrário de Thiago Amparo, Dennis Pacheco não é tão otimista sobre essa melhora. “Essa medida por si só não é suficiente para garantir a coleta e transparência de dados. É necessária uma mobilização muito maior de contagem e fiscalização, em vez de simplesmente mexer na letra da lei, até porque a lei não muda a realidade. A lei não é suficiente.”

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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