No caminho do judô feminino, medalhas e discursos de equidade
Fetiche em qualquer Olimpíada, o quadro de medalhas sempre entrega quais são as potências esportivas da vez, os países que estão em ascensão e aqueles que já não conseguem performar como em outros tempos. Mas as medalhas totais de cada edição dos Jogos também são uma pista importante para enxergar questões que vão muito além das premiações. Permitem recortes por região, gênero, e olhando com atenção para esses aspectos não é difícil visualizar como as mulheres latino-americanas conquistaram espaço e resultados em ciclos olímpicos recentes. Para destacar a evolução delas, Gênero e Número fez o recorte de latino-americanas medalhistas de Barcelona-1992 a Londres-2012 e constatou que foram esses os 20 anos mais impactantes para as mulheres em toda a história dos Jogos. Foram 101 medalhas olímpicas arrebatadas nesse período, o que representa, mesmo com a Rio-2016 em curso, cerca de 90% do total ganho desde o primeiro pódio, em 1936, quando a chilena Marlene Ahrens garantiu a prata no dardo.
Na Rio-2016, os primeiros dias de disputa já contaram com mais latino-americanas em destaque. O primeiro ouro individual feminino da história da Argentina, com a judoca Paula Pareto (até 48kg), mostra que o fôlego na região continua, e que os lugares ainda não alcançados no esporte tendem a ser cada vez menos.
Mas apesar da evolução nesses últimos seis ciclos olímpicos, ainda não se pode dizer que existe uma América Latina coesa no objetivo de avançar na ascensão feminina no esporte, pois nem metade dos países da região contava, até o início dessas Olimpíadas, com mulheres medalhistas. O que há, atualmente, são países onde o esporte refletiu o avanço das conquistas feministas e, em alguns deles, isso ainda foi potencializado pela aposta de governos em políticas de esporte ou pelo investimento privado em determinadas modalidades. “O esporte não pauta com muita força movimentos da sociedade, mas sempre reflete os movimentos sociais maiores”, afirma Katia Rubio, pós-doutora, professora da Escola de Educação Física e Esporte da USP e coautora do livro Woman and Sport in Latin America (sem tradução para o português).
Brasil e Cuba: avanços em bases diferentes
Os números acima não deixam dúvidas: Brasil e Cuba são as potências regionais nos Jogos Olímpicos. E mesmo que as cubanas tenham começado a subir no pódio já em 1968, bem antes das brasileiras, só na década de 90 ficou claro, com as oito medalhas em Barcelona e as sete em Atlanta, que as mulheres de Cuba haviam chegado para vencer e impactariam fortemente o resultado final do país em todas as edições dali para frente. O desempenho era consequência de uma política de Estado na Cuba pós-revolução de 1959 que havia determinado a prática de esportes como “um direito para todas as pessoas”, a partir da criação do Instituto Nacional do Esporte, Educação Física e Recreação (INDER), em 1961. A equidade entre gêneros não foi atingida a partir dessa política, nem no esporte nem em qualquer outro campo social em Cuba, mas os efeitos do investimento social se tornaram claros quando gerações como a de Yumilka Ruíz começaram a surgir.
Ex-jogadora de vôlei, Ruíz começou aos oito anos a praticar a modalidade que a levaria ao bicampeonato olímpico (1992 e 1996). “Nós, em Cuba, temos, a pirâmide do esporte, em que a base são as escolas de rua, logo você vai para a EID (Escola de Iniciación Deportiva Escolar), que é um segundo nível, e depois você segue para um terceiro nível que é a ESPA (Escuela Superior de Perfeccionamiento Atlético). Então, se você cumpre todos os requisitos, pode chegar à equipe nacional”, diz a esportista, relembrando sua própria trajetória. Ruíz atualmente é membro da Comissão dos Atletas do COI (Comitê Olímpico Internacional).
No Brasil, os pódios olímpicos só se abriram para as mulheres a partir de Atlanta-1996, menos de uma década depois da Constituição de 1988 -que pregava a igualdade de homens e mulheres em direitos e obrigações- e nada menos que 76 anos após a primeira medalha olímpica masculina. Ana Moser, um dos nomes mais fortes daquela geração de atletas, afirma que além da questão salarial não havia outros pontos críticos que diferenciassem o tratamento dado a atletas homens e mulheres pela confederação. “As remunerações sempre foram diferentes, mas em termos de treinamento não havia diferença entre gêneros. A gente também viajava a competições internacionais, tinha bons espaços para treinos e equipe técnica competente”. A atleta diz que nos anos que precederam a primeira medalha do vôlei feminino (bronze) não houve nenhum esforço por parte do Estado para alavancar a posição das mulheres nos Jogos. “Não havia uma política de Estado para o esporte [nos anos 90] como eu vejo que ainda não há, nem para as mulheres nem para os atletas em geral, mas havia ações específicas para o vôlei, e isso foi fundamental”, diz a medalhista. Moser destaca o investimento do Banco do Brasil no vôlei, iniciado em 1991, que já permitia às equipes masculina e feminina contar com uma satisfatória estrutura de treinamento.
As remunerações sempre foram diferentes [para atletas homens e mulheres], mas em termos de treinamento não havia diferença entre gêneros”
— Ana Moser, medalhista olímpica
Se o vôlei, esporte disputado pelas mulheres nas Olimpíadas desde 1964, popularizou-se rapidamente nos países latino-americanos onde as medalhas olímpicas passaram a ser uma constante na modalidade, foi o judô, liberado para as mulheres apenas nos Jogos de 1992, que garantiu a elas o maior número de conquistas. Desde Barcelona-1992, foram 29 no total – 20 a mais que no vôlei. Brasil, Cuba, Argentina e Colômbia foram os países da região que medalharam nos tatames femininos.
Seleção Brasileira no ínicio da campanha por mais um título, na Rio-2016, contra Camarões Foto: William Lucas/CBV
No caminho do judô feminino, medalhas e discursos de equidade
Sarah Menezes, brasileira que arrebatou o primeiro ouro olímpico feminino no judô aos 22 anos, em Londres-2012, chegou à seleção aos 15 anos, quando lá já havia uma treinadora mulher sacudindo a modalidade. Ex-atleta, Rosicleia Campos enfrentou o machismo quando foi anunciada treinadora pela Confederação Brasileira de Judô, em 2004. Em diversas declarações públicas, ela relembrou o preconceito que sofreu por parte de colegas homens, que colocavam em dúvida sua competência diante de dirigentes do judô. Sarah, tida como talento desde que chegou à seleção, foi blindada por Rosicleia e pelos resultados que obteve ao longo da trajetória.
Hoje desfrutando de toda a estrutura que o COB e a CBJ criaram para o judô seguir na trilha das medalhas, a judoca, que na Rio-2016 não conseguiu repetir o desempenho de Londres-2012, afirma não sentir qualquer diferença na forma como atletas homens e mulheres são tratados. Nem mesmo a remuneração lhe parece uma questão sensível. “As premiações das competições [no judô] são igualitárias. Homens e mulheres competem no mesmo dia e os medalhistas ganham os mesmos valores em premiações. Na seleção não é diferente. É tudo por mérito, não por gênero. Hoje estou satisfeita com meus rendimentos, tenho apoio de diversas fontes, da Confederação Brasileira de Judô, do Comitê Olímpico do Brasil, Ministério do Esporte, da Marinha do Brasil e dos meus patrocinadores pessoais”, afirma Sarah.
Enquanto o judô olímpico brasileiro demonstra um caminho de equidade para a questão de gênero, muito em função dos resultados obtidos, o mesmo ainda não se pode falar sobre esportes olímpicos que reproduzem estruturas hierárquicas e masculinas nas quais mulheres quase não têm voz, como o boxe. Liberado para a categoria feminino apenas em 2012, rendeu uma medalha de bronze para o Brasil, conquistada por Adriana Araújo. Ao subir ao pódio em Londres, ela fez duras críticas ao presidente da Confederação Brasileira de Boxe, Mauro Silva. Em seguida, foi cortada da seleção. Alegaram razões técnicas, mas o argumento não a convenceu. Na Rio-2016, depois de refazer as relações e voltar à seleção, Adriana tenta sua segunda medalha olímpica. Resta ouvir o que ela teria a dizer sobre o boxe brasileiro quatro anos depois.
Giulliana Bianconi é jornalista e codiretora da Gênero e Número
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