
Nesta segunda parte da entrevista com a bicampeã olímpica de vôlei Fabi, o assunto são os Jogos Olímpicos de Tóquio. Seu trabalho já começa nesta sexta-feira (23), quando a seleção masculina de vôlei estreia contra a Tunísia, às 23h. Mãe de Maria Luiza, de 2 anos, ela diz que as duas semanas de jogos, muitos de madrugada, serão “uma aventura”.
Com “sentimentos divididos” em relação à realização desta Olimpíada ainda durante a pandemia de coronavírus, Fabi acredita que sua missão como comentarista vai além dos números. O que ela quer é contar as histórias por trás de possíveis heróis que surjam nas quadras e na areia, já que ela está se preparando também para estrear como comentarista de vôlei de praia.
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Confiante em medalhas para o vôlei, ela acredita que essa edição dos Jogos Olímpicos será marcada por mensagens importantes através da equidade no número de competidores, as manifestações políticas de atletas, a possível consagração da ginasta americana Simone Biles e a presença de uma atleta trans no levantamento de peso. “Acho que tudo isso vai ao encontro dessa mudança que a gente está clamando tanto, enquanto mulher, na sociedade – no Brasil e no mundo”, diz ela.
Leia a entrevista:
Esta será a segunda vez que você vai comentar o vôlei nas Olimpíadas [a primeira foi na Rio 2016]. Como é a sua preparação?
Estudo muito. Eu vejo os jogos, assisto às competições. Trabalhando agora na televisão, eu criei uma rotina mais ou menos parecida com a de atleta. Então eu sento na frente do computador, fico estudando as adversárias, os times de um modo geral, onde cada uma está jogando … eu tento sempre ir para as informações extras, além dos números. Óbvio que falar que uma Egonu [Paola Egonu, estrela da seleção italiana] fez 42 pontos no jogo é relevante, é legal, mas falar também que ela é filha de imigrantes, ir atrás dessas histórias, falar para além do esporte, acho que esse é o meu grande desafio desde que comecei a comentar.
A gente vai, pela primeira vez, ver uma disputa olímpica em que estaremos muito próximo da equidade [no número de atletas masculinos e femininos], então falar dessas coisas, para mim, é tão importante quanto falar dos números da Egonu, por exemplo. Associar as boas histórias à história esportiva. Então eu busco ler muito, me aproximo também dos treinadores. Alguns treinadores ainda são da minha época, eu consigo falar diretamente com eles para acompanhar a evolução técnica e tática dos times e também tentar entender o que se passa na cabeça de cada um. Acho que essa é a minha missão como comentarista, trazer boas histórias.

E qual o seu sentimento em relação a essa Olimpíada em meio à pandemia?
Eu fiquei bastante dividida com essa questão da pandemia e a realização dos Jogos, mas penso assim: já que vai ter, que seja um encontro cheio de protocolos, mas um encontro de povos, que é a grande mensagem dos Jogos Olímpicos. Então, eu acho que a Olimpíada pode ter um papel importante de dar alento às pessoas. E acho que esse momento olímpico vai ser mais do que especial nesse sentido, das histórias, porque eu tenho uma expectativa muito baixa de quebra de recordes, de ver conquistas de 20 medalhas de um atleta individual, aquelas coisas que a gente está habituada a ver.
Você está confiante em relação ao desempenho do vôlei brasileiro?
Olha, eu acho que a gente tem boas chances e acho muito importante a gente dar aos nossos adversários o que é deles, que é a responsabilidade. Se a gente somar o vôlei de quadra com o vôlei de praia, são 23 medalhas olímpicas no total. É sempre muita esperança de pódio.
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Falando do vôlei feminino, não vejo a gente como grande favorito. Acho que a gente tem um time coletivamente muito bom, mas diferente dos grandes favoritos, que seriam Sérvia, Itália, China, que têm jogadoras que podem definir o jogo, como a Egonu, a Boskovic [Tijana Boskovic, considerada a melhor jogadora de vôlei da atualidade] pela Sérvia, a Ting Zhu, pela China, que é um fenômeno. Mas a gente tem também o Zé Roberto, que é um dos treinadores mais experientes que existem, então, eu acredito muito que a gente possa subir ao pódio.
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Os Jogos têm uma mensagem para além do esporte, de espírito de solidariedade ao outro. E a gente vai ter que falar mais da inclusão das pessoas trans, do lugar que elas ocupam na sociedade, no esporte. Onde que para a sociedade está tudo bem? Onde elas não são vistas, na invisibilidade
Já o masculino, a gente observou ao longo do ciclo, foi um time mais constante: chegou à final do Campeonato Mundial novamente, ganhou a Copa do Mundo, ganhou agora a Liga das Nações, então é um time que, ao lado da Polônia, talvez seja um dos grandes favoritos a essa medalha de ouro. Eu não consigo enxergar o masculino não subindo ao pódio, seria uma surpresa para mim.
E no vôlei de praia também. Me colocaram para comentar também e eu estou estudando igual uma doida. Acho que a gente tem duas duplas brasileiras que podem brigar por esse pódio: a Duda e a Agatha foram mais regulares, especialmente nesse último ano, mas Ana Patricia e Rebecca foi a primeira dupla do Brasil a se classificar, fez uma temporada 2019 muito boa. O masculino acho que já é mais homogêneo, mas a dupla favorita ao ouro é a norueguesa. Eles [Anders Mol e Christian Sorum] são o número um do mundo, o time a ser batido. Você viu que eu estou bem informada, né?
Voltando ao assunto da equidade. Você acha que isso efetivamente reflete alguma mudança no movimento olímpico?
Este é um ambiente que, na sua história, teve apenas presidentes homens. Então, por isso, acho que essa equidade já diz muito. Se a gente pensar que as mulheres já foram proibidas de participar dos Jogos, que a gente teve apenas Aída dos Santos nos representando lá nesse mesmo lugar que vamos estar de volta agora, apenas ela na delegação, sem uniforme… Há possibilidade de ter uma mulher como o grande nome desses Jogos, coisa que também não acontecia há alguns anos. Houve Usain Bolt durante um tempo, Michael Phelps. Agora pode ser [a ginasta americana] Simone Biles, uma mulher e uma mulher negra.
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Eu acho que vem – acho não – afirmo que, com essa grande possibilidade [do sucesso absoluto de Simone Biles], vem uma mensagem e uma necessidade de mudança estrutural no mundo. Ainda mais pensando no Japão, um país com essa cultura enraizada da hierarquia e dos homens na liderança, que viu, nesse ciclo olímpico, dirigentes perderem seus cargos por declarações misóginas. Então, acho que tudo isso vai ao encontro dessa mudança que a gente está clamando tanto, enquanto mulher, na sociedade – no Brasil e no mundo.
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Com essa profusão de manifestações que temos visto ao longo deste último ano, com posicionamentos políticos de atletas, o COI, essa instituição tão conservadora, está sendo obrigada a se abrir. A gente quer ter o direito, enquanto atleta, de poder falar sobre outras coisas também
Mas será que esse movimento dentro do esporte que ganha força agora nos Jogos consegue reverberar para além das Olimpíadas? Porque as mulheres continuam ganhando menos, tendo menos visibilidade, menos patrocínios…
É transformar essa coisa em ação, né? Isso que vai ser o grande desafio, mas é um caminho. Falando especificamente do vôlei, houve uma mudança na estrutura nos últimos três, quatro anos. Hoje, temos uma competição [Liga das Nações] igual para homens e mulheres, com a mesma premiação. Na edição deste ano foi lançada até uma campanha de equidade de gênero e, na final, os atletas usaram uma camisa da campanha durante um tempo do primeiro set.
Eu não sei até que ponto isso é uma mudança ou é marketing, mas pouco me importa o que estão querendo com isso, o que me importa é a ação e quem aquilo vai tocar. Acho que isso é importante. E a gente quer ver uma mudança na estrutura, a gente quer ver as mulheres comandando. Na Rio-2016, entre os 32 treinadores [das seleções feminina e masculina], apenas uma era mulher. Agora no Japão serão duas. Isso já é simbólico, é pouco, mas pode inspirar outras meninas, pode inspirar outras atletas.
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O posicionamento político dos atletas forçou uma mudança de postura do Comitê Olímpico Internacional (COI) também.
Sim, essa foi uma mudança interessante. Com essa profusão de manifestações que temos visto ao longo deste último ano, com posicionamentos políticos de atletas, o COI, essa instituição tão conservadora, está sendo obrigada a se abrir, a mexer na carta olímpica. Nos Jogos, o atleta que se manifestar politicamente já não vai ser punido, não vai perder a medalha, como era antigamente. A gente quer ter o direito, enquanto atleta, de poder falar sobre outras coisas também. E quem não acompanhar, não entender a necessidade dessas mudanças, vai – principalmente com as redes sociais – ser muito questionado.
A neozelandesa Laurel Hubbard, do levantamento de peso, será a primeira atleta trans a competir na Olimpíada. Essa é outra conquista importante.
Eu imagino como é que não deve estar sendo para essas pessoas que estão há muito tempo lá no poder, no COI, que estão dentro de uma cultura onde a inclusão não é muito a palavra. Para eles é apenas a realização de um grande evento, de números, de valores, de ingressos, de quanto vai se vender, quanto vai se ganhar. Mas a gente sabe que os Jogos têm uma mensagem – como já falamos aqui – para além do esporte, de espírito de solidariedade ao outro. E a gente vai ter que falar desse assunto, falar mais da inclusão das pessoas trans, do lugar que elas ocupam na sociedade, no esporte. Onde que para a sociedade está tudo bem? Onde elas não são vistas, na invisibilidade.
E para finalizar, como você imagina essa cobertura, no horário do Japão, com muitos jogos na madrugada?
Com uma criança pequena, nesse fuso-horário? Vai ser uma aventura, viu?
*Sanny Bertoldo é editora da Gênero e Número