por Tainah Pereira e Fabiana Pinto
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hegamos a mais um ciclo eleitoral, e com ele o movimento Mulheres Negras Decidem reforça a necessidade de confiar, construir e fortalecer o projeto político de mulheres negras com bases progressistas para que consigamos avançar com a Justiça Social.
Não à toa, lançamos em julho o livro Estamos Prontas: Lições de Mulheres Negras Lideranças Coletivas nas Eleições Brasileiras, que surge como uma expressão viva dos desafios e conquistas das mulheres negras na política brasileira durante o ciclo eleitoral de 2022. A obra não é apenas uma coleção de histórias, mas um testemunho do poder de transformação que reside na comunicação política e comunitária, na educação política e na resiliência coletiva.
Por meio de uma abordagem multifacetada, o livro desdobra a jornada do projeto “Estamos Prontas”, uma iniciativa que se posicionou no cerne dos desafios políticos e sociais enfrentados pelas mulheres negras na política.
A obra é mais um dos resultados da frutífera parceria entre o Instituto Marielle Franco e o Movimento Mulheres Negras Decidem (MND), que ousaram desenvolver uma iniciativa comprometida em alcançar uma abrangência nacional e superar as hierarquias regionais que comumente dão mais peso ao Sudeste em detrimento de Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Apoiar uma liderança em cada um dos 27 estados do país foi um desafio enorme, mas também traduziu-se em uma grande oportunidade de comprovar a capilaridade do projeto político de mulheres negras por todo o Brasil.
Para pavimentar as reflexões provocadas pela experiência do “Estamos Prontas”, resgatamos o caráter ancestral de nossa luta e alguns marcos importantes da história do movimento brasileiro de mulheres negras.
A luta das mulheres negras no Brasil remonta ao tráfico transatlântico que trouxe ao continente uma infinidade de povos africanos. Apesar do colonialismo ter investido deliberadamente na fragmentação social e histórica desses povos, conseguimos preservar muitas tradições e dar continuidade histórica às nossas lutas.
Muitas das ancestrais que aqui desembarcaram já haviam travado batalhas contra as violências do colonialismo na África. Aqui, essas mulheres não apenas preservaram tradições e formas de combatividade, como também desenvolveram novas estratégias e técnicas de resistência e poder.
Somos herdeiras de um povo que acreditou na liberdade, mesmo quando esse projeto parecia uma ficção. Somos fruto da tradição de mulheres negras guerreiras em sua luta diária pela sobrevivência. Somos descendentes das centenárias irmandades religiosas femininas negras que lutaram pela própria liberdade e que libertaram os nossos. Somos herdeiras diretas da irmandade da Boa Morte, filhas, netas e bisnetas de Mãe Stela de Oxóssi, de Makota Valdina e de tantas outras lideranças religiosas do candomblé que resistiram com silêncio ou com feitiço ao Estado. Somos um projeto de luta contínua por liberdade.
Apesar de não serem reconhecidas, nossas formas de organização política precedem e transcendem o que a narrativa hegemônica da esquerda e do feminismo costuma destacar como luta das mulheres e da classe trabalhadora. Mesmo com o recorrente silenciamento, as mulheres negras seguem disputando os rumos da luta política.
Na década de 1980, essa disputa tornou-se ainda mais significativa, pois foi quando, segundo Sueli Carneiro, as mulheres negras brasileiras encontraram seu caminho de autodeterminação política, soltaram suas vozes, brigaram por representação e fizeram-se presentes em todos os espaços de importância para o avanço da questão da mulher hoje.
De lá para cá, a emergência de várias organizações de mulheres negras e nosso protagonismo em fóruns e eventos nacionais e internacionais passou a reverberar na formulação das bandeiras de luta dos movimentos sociais e pautar também as políticas públicas. Exemplo disso é o protagonismo da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, coordenada por Criola (Rio de Janeiro), Geledés – Instituto da Mulher Negra (São Paulo) e Maria Mulher (Rio Grande do Sul), na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em 2001, em Durban, África do Sul.
Ressaltamos também a importância da I Marcha de Mulheres Negras Contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, realizada em 18 de julho de 2015. Organizada por meio de comitês locais que desenvolveram uma gama de estratégias e táticas de articulação política e mobilização, com uma forte liderança da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, a Marcha reuniu em Brasília cerca de 50 mil mulheres negras de todos os cantos do país.
Na ocasião, o movimento de mulheres negras apresentou um programa político consistente, que está sendo desdobrado e aprofundado há cerca de 10 anos. Assim, o 25 de Julho – Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, que no Brasil também é o dia de Tereza de Benguela, tem tido cada vez mais peso e importância na agenda nacional de lutas de movimentos sociais.
Especialmente a partir de 2016, muitas mulheres negras lideranças coletivas se lançaram na disputa eleitoral. As eleitas levaram para o interior das casas legislativas nossos acúmulos históricos e o fizeram lançando mão de novas formas de construir mandatos, a exemplo da mandata da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro, que em apenas um ano de exercício conduziu grandes feitos e movimentou estruturas da Câmara e do poder local, a ponto de ter sido alvo de uma emboscada que ceifou sua vida e a de seu motorista, Anderson Gomes.
Sabemos que ao interromper a vida de Marielle Franco, esperavam interromper o ciclo de avanços que ela representava. Se enganaram, porque apesar da crescente insegurança política e das violências racistas diárias, não recuamos das formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de libertação.
Apesar da ascensão da extrema direita, as eleições de 2018 e 2020 foram um avanço para o Movimento de Mulheres Negras. Em todo o país, tivemos candidaturas que ampliaram o alcance das nossas pautas e muitas foram vitoriosas, apresentando projetos coletivos radicais. Mas as barreiras impostas pelo racismo e pelo sexismo persistem, dificultando e inviabilizando o aumento da representação feminina negra nas casas legislativas e cargos de tomada de decisão.
Não temos ilusão com os espaços de poder da política institucional. Sabemos que foram erguidos para perpetuar o racismo e atender aos interesses do capital. Compreendemos perfeitamente que não é dali que virá nossa libertação e isso nos coloca novas contradições e novos desafios.
Queremos construir um novo modelo de participação política para que o isolamento não seja a marca e um desestímulo para nossa atuação. Sabemos que, ao ocupar a política institucional, criamos novos instrumentos para um processo muito mais amplo de resistência e poder, que vem sendo gestado pelo Movimento de Mulheres Negras, mas também pelas muitas mulheres negras anônimas, que tocam a luta diária, em suas famílias e seus territórios. Conforme Lélia Gonzalez:
Mas sobretudo a mulher negra anônima, o sustentáculo econômico, afetivo e moral de sua família é quem, a nosso ver, desempenha o papel mais importante. Exatamente porque com sua força e corajosa capacidade de luta pela sobrevivência, transmite a nós, suas irmãs mais afortunadas, o ímpeto de não nos recusarmos à luta pelo nosso povo."
O dia 14 de março de 2018 marcou a história do movimento de mulheres negras no Brasil e mudou, definitivamente, o rumo das iniciativas da sociedade civil
brasileira em torno da agenda de fortalecimento de lideranças e renovação de quadros políticos do campo da esquerda. O MND e o IMF, que lideraram em 2022 a iniciativa Estamos Prontas, estiveram no centro do reposicionamento das ações políticas desenvolvidas para enfrentar o avanço da extrema direita no Brasil, na resposta à pandemia da Covid-19 e na construção de condições mais justas para a disputa eleitoral durante o ciclo de 2020.
Em 2020, elaboramos a pesquisa Para Onde Vamos, que apresentou o papel crucial das mulheres negras ativistas na resposta à pandemia da Covid-19. O estudo forneceu dados de 245 mulheres negras ativistas, garantindo o reconhecimento e a valorização das experiências e contribuições dessas mulheres, desafiando a noção de que são apenas beneficiárias de programas emergenciais e mostrando que são, na verdade, criadoras e implementadoras de soluções em contextos de emergência.
No mesmo ano, com o objetivo de transformar as estruturas do sistema político brasileiro por meio de eleições antirracistas, o Instituto Marielle Franco e o Movimento Mulheres Negras Decidem, em conjunto com a Coalizão Negra por Direitos e a Educafro, pressionaram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e conseguiram a aprovação da consulta da deputada federal Benedita da Silva, que pedia a garantia de distribuição proporcional de financiamento de campanha e tempo de propaganda em TV e rádio para candidaturas negras nas eleições daquele ano.
O Estamos Prontas fortalece as mulheres negras nas suas redes de apoio e na sua força coletiva. O projeto nasceu do compromisso das organizações com as mulheres negras que, em todos os cantos do país, travam a luta diária pela sobrevivência, mas que também enxergam na política institucional um importante instrumento de luta.
Ao elaborar essa iniciativa, apostamos na integração das ações já desenvolvidas em parceria entre o IMF e o MND, bem como no conjunto de acúmulos de outras organizações parceiras de uma ampla rede, a exemplo do Fórum Nacional Marielles, da Coalizão Negra por Direitos, além do Instituto de Referência Negra Peregum.
A partir de uma abordagem radical para o avanço e a renovação de quadros políticos progressistas, construímos uma intervenção focada na participação popular e coletiva em todas as etapas do projeto. Com apoio financeiro direto, desenvolvemos o projeto em duas etapas: a primeira consistiu no desenvolvimento de ações integradas com as redes das pré-candidatas, a partir de agosto de 2021. A segunda fase, desenvolvida entre março e outubro de 2022, teve por objetivo o desenvolvimento de processos de incidência política para a defesa de candidaturas das mulheres negras nos 27 estados do país, potencializando as que tinham maior viabilidade eleitoral, sem abrir mão da perspectiva antirracista e coletiva do projeto.
Por fim, o Estamos Prontas é muito mais que um livro. Trata-se de um guia para a ação política e uma celebração da resiliência e do poder transformador das mulheres negras. As lições e estratégias compartilhadas no livro são uma chamada à ação para todas as mulheres negras do Brasil e do mundo, inspirando futuras gerações a continuar lutando por um futuro mais justo e igualitário. Nossa jornada é longa, mas juntas estamos prontas para transformar a política e o nosso país.