Felícia Picanço
A
s mulheres orbitam em torno da maternidade, sejam mães ou não. Quando mães, são cobradas a preencherem um modelo idealizado de cuidados, quando não, são cobradas e o adiamento da maternidade é cercado de rituais e preocupações médicas.
Como afirma Badinter (2011): “Desde que as mulheres controlam a reprodução, estudam, invadem o mercado de trabalho e reivindicam a liberdade financeira, a maternidade não é mais uma evidência natural, mas um problema”.
Ao ser desnaturalizada, seja pelo controle de quando ocorrerá, seja pela escolha de não ter filhos, a maternidade se expande nas últimas décadas como mote de uma militância ativa, desde os movimentos do childless e childfree, que reivindicam o direito a não ter filhos e a não conviver com crianças, até os variados grupos pró-maternidade de diferentes espectros moral, cultural, político e ideológico ou das “mães arrependidas”.
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De uma forma ou de outra, é preciso falar da maternidade. Passamos a fazer isso no plural – maternidades – e a politizar e reivindicar direitos das mães frente à penalização da maternidade na inserção profissional, na família e na saúde, em especial a mental.
A mãe carinhosa, a mãe nervosa, a mãe filha da mãe: qual é o modelo de mãe ideal a partir do qual elas são julgadas? O survey internacional Família e mudanças de papéis de gênero, do International Social Survey Programme (ISSP), realizado em 40 países em 2012, perguntou sobre o grau de concordância e discordância com afirmações que procuram medir adesão ou afastamento do modelo tradicional de envolvimento das mulheres em relação à casa e maternidade. As pesquisas do Brasil se inspiram no questionário para produzir dados comparativos.
Teias do cuidado: um espaço de divulgação científica na Gênero e Número
Quando perguntado o grau de concordância com a afirmação “o trabalho do homem é ganhar dinheiro e o trabalho da mulher é cuidar da casa e da família”, no Brasil de 2002, 52% dos homens e 44% das mulheres concordavam. Em 2016, os percentuais caem para 36% e 28%, respectivamente.
Embora todos estejam mais distantes do modelo tradicional da mulher dedicada à casa e do homem dedicado ao trabalho remunerado, a distância entre homens e mulheres se mantém inalterada.
Os percentuais alcançados pelos brasileiros colocam o país no meio de uma escala de adesão aos valores mais tradicionais de gênero, afastado de países mais tradicionais – como Filipinas, Eslováquia, Argentina, Rússia, Polônia, Índia e México -, onde mais de 50% dos homens e mulheres concordavam com a afirmação, e de países menos tradicionais – como Noruega, Suécia, Dinamarca, Islândia -, onde menos de 10% dos homens e mulheres estavam de acordo com o que a pergunta colocava.
Pesquisas de opinião sobre valores de gênero no Brasil
No âmbito dos afetos, na afirmação “Uma mãe que trabalha pode ter uma relação tão carinhosa quanto uma mãe que não trabalha”, em 2002, 60% dos homens e 63% das mulheres brasileiras concordavam com a frase. Depois de 14 anos, os percentuais sobem para 80% e 78%, respectivamente.
Os resultados aproximam os homens brasileiros dos maiores percentuais de concordância, encontrados entre os de Islândia, Dinamarca, Eslovênia, Alemanha e Taiwan. As mulheres brasileiras, embora não estejam no topo junto com os países como Dinamarca (90% de concordância) e Islândia (89% de concordância), estão distantes das mulheres dos nossos pares latino-americanos, como Argentina (63% de concordância) e Chile (51% de concordância).
A concordância com a afirmação “a família sofre quando uma mãe trabalha em tempo integral”, em 2002, chegava a 69% dos homens e 72% das mulheres brasileiras. Em 2016, os dois percentuais caem para 53%. Embora homens e mulheres tenham reduzido seus percentuais de concordância, a queda não colocou o país próximo daqueles considerados conciliatórios, como Finlândia, Suécia, Islândia, Dinamarca e Noruega, onde a concordância está abaixo de 20%. Homens e mulheres brasileiros estão próximos de países mais tradicionais, como Rússia, Filipinas, Coreia do Sul e Espanha.
O bloco das mães solo
Ainda que o modelo tradicional de mulheres centradas na casa venha perdendo espaço e a fecundidade venha caindo no Brasil e em outros países, quando a pergunta foi sobre o número ideal de filhos, quase nenhuma mulher declarou que o ideal era não ter filhos. Os maiores percentuais foram encontrados entre mulheres brasileiras (3,0%) e mexicanas (2,6%).
A maternidade ainda é um ideal para quase todas as mulheres. As variações encontradas estão no número ideal de filhos. O Brasil faz parte do grupo de países como China, Índia, Alemanha, Portugal, Hungria, Rússia e Bélgica, onde ao menos duas de cada três mulheres acham que um a dois filhos é o ideal. Já em Israel, Filipinas, Islândia, Irlanda e Japão, ao menos duas de cada três mulheres acham que o número ideal de filhos é acima de três.
Uma questão posta é se o número ideal de filhos está atrelado a visões mais tradicionais dos papéis de gênero. A afirmação “o trabalho do homem é ganhar dinheiro e o trabalho da mulher é cuidar da casa e da família” expressa muito claramente um papel tradicional de gênero, mas ao cruzar as respostas de quem está de acordo ou em desacordo com a afirmação e a opinião sobre o número ideal de filhos, observamos que a diferença entre os dois grupos é muito pequena.
O resultado indica que aderir à visão mais tradicional não impacta na opinião sobre o número ideal de filhos, o que sugere que essa posição está atrelada a outras dimensões das experiências das mulheres no contexto macrossocial e microssocial nos quais estão inseridas e não nos valores mais gerais dos papéis de gênero.
Esse tipo de nuance é um exemplo do que o Teias do Cuidado vai investigar ao longo da pesquisa.