Mulheres negras eleitas para uma democracia com paridade de gênero e equidade racial

Montagem com as fotos de Almerinda Farias Gama, Antonieta de Barros, Benedita da Silva, Laélia de Alcântara e Kátia Tapety, mulheres negras pioneiras na política
Almerinda Farias Gama, Antonieta de Barros, Benedita da Silva, Laélia de Alcântara e Kátia Tapety, mulheres negras pioneiras na política

Movimento Mulheres Negras Decidem

Desde que os movimentos negros brasileiros começaram a reivindicar a autodeclaração de cor ou raça como uma necessidade política, na década de 1930, vimos crescer na sociedade a percepção de que havia uma parcela significativa da população ainda sem condições de exercer sua cidadania de forma plena.  Mesmo nos dias atuais, pessoas negras ainda não participam de forma igualitária da vida política do país.

Essa participação, entendida como presença, ativação e decisão, é particularmente difícil para mulheres negras, ao mesmo tempo que é incontornável para o avanço da democracia brasileira, já que correspondemos a mais de 28% da população.

Cada vez mais, mulheres negras se reconhecem como agentes políticas e, igualmente, são identificadas por outros atores políticos como uma potência eleitoral. Isso faz com que partidos e outras instituições tracem estratégias específicas de contato, agregação e informação direcionados a mulheres negras.

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No passo seguinte, a ativação, partidos políticos e movimentos sociais buscam impulsionar o engajamento desse grande grupo político nas propagandas e campanhas eleitorais, e também na militância.

O terceiro nível de participação política, representado pela decisão, diz respeito à contribuição direta ou indireta para a escolha de representantes ou para sua própria candidatura.

É claro que o grau de participação de mulheres negras varia bastante em termos de presença, ativação e decisão. Embora sua atuação seja imprescindível em todas as etapas, é no nível da decisão que estão os maiores gargalos. Historicamente, tem sido mais difícil para mulheres negras conseguir se eleger e exercer seus mandatos. A sobrecarga de trabalhos de cuidados, as desigualdades financeiras, as barreiras sociais que limitam o desenvolvimento de seu capital político e a violência política de gênero e raça são alguns dos empecilhos para essa realização.

Ainda assim, mulheres e homens negros organizados estão avançando aos poucos na ocupação dos espaços de poder e decisão. O pioneirismo feminino nessa trajetória é inegável: menos de 50 anos haviam se passado desde a abolição da escravidão no Brasil e mulheres negras já estavam na linha de frente da luta por direitos.

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Pioneiras

Nascida há 125 anos, a advogada e sindicalista Almerinda Farias Gama foi uma mulher negra pioneira na política brasileira, ao depositar seu voto na urna durante a Assembleia Constituinte de 1934. Sua luta por justiça começa com a reivindicação de um salário igual ao que homens recebiam pelo mesmo trabalho, na datilografia.

Um ano depois, foi a vez de Antonieta de Barros registrar seu nome na história, como a primeira mulher negra eleita por voto popular no país, após uma campanha que tinha como principal bandeira a educação como ferramenta de transformação social.

Quase meio século depois, Benedita da Silva foi eleita vereadora no Rio de Janeiro. Depois, também foi governadora, senadora e deputada federal. Entre tantas contribuições às lutas das pessoas negras e das mulheres, Bené foi a responsável pela proposição de uma emenda à Constituição que reconhecia, finalmente, as trabalhadoras domésticas como uma categoria formalizada, garantindo a elas (negras, em sua maioria), mais dignidade no desempenho de suas funções.

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No início dos anos 1980, Laélia de Alcântara chega ao poder como a primeira senadora da história do Brasil. Assim como Benedita, Laélia subiu muitas vezes à tribuna para defender a redemocratização, a equidade de gênero na política e o fim do racismo. Em suas palavras:

Os negros têm tudo para furar a barreira da penúria e da estagnação. Já é tempo de não mais se situarem nos pontos mais críticos dos gráficos, nos índices mais medíocres das estatísticas, nos parágrafos mais soturnos dos relatórios e nos segmentos mais inferiores das pirâmides. A massa de negros em nossa terra não permaneceu de braços cruzados diante da escravidão. Ela reagiu por todos os modos e como pôde. Protestou por meio de quilombos, fugas, rebeliões e até crimes cometidos contra senhores e feitores. Foi sempre altivo e continua a sê-lo. É um erro histórico dar à escravidão brasileira o aspecto de falsa suavidade. O negro é um insubmisso diante de toda forma de arbítrio e opressão.

(Senadora Laélia de Alcântara. Fonte: Senado Federal)

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Nos anos 1990, foi a vez de Kátia Tapety, primeira travesti negra eleita no Brasil, conquistar o cargo de vereadora.  O pioneirismo de Kátia foi tanto, que ela chegou a presidir a Câmara de Vereadores de sua cidade, Colônia do Piauí (PI), e posteriormente se elegeu vice-prefeita do município. Tapety é referência nas lutas dos movimentos de travestis e mulheres trans negras por sua luta incansável pelo acesso a saúde e moradia de qualidade para todas as pessoas.

Outras figuras políticas importantes também merecem reconhecimento por sua atuação vanguardista em defesa dos direitos da população negra e no combate ao racismo. Carlos Alberto Caó, deputado federal e constituinte, foi responsável pela emenda constitucional que tornou o racismo crime inafiançável e imprescritível. Em sua homenagem foi aprovada a Lei Caó (7.716/1989), que versa sobre os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

Décadas depois, o político de esquerda Paulo Paim foi o autor do Estatuto da Igualdade Racial, instrumento jurídico fundamental para o reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro em promover políticas públicas capazes de efetivar a igualdade e as condições de acesso a direitos para a população negra. As políticas de ação afirmativa para pessoas negras (pretos e pardos), indígenas, com deficiência e LGBTQIAP+ elaboradas por governantes e parlamentares desde então, partem dos pressupostos e compromissos previstos no Estatuto.

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Linha do tempo de ações afirmativas de gênero e raça na política

1995

A Lei 9100/95 institui pela primeira vez uma reserva de 20% das vagas para mulheres nas listas de partidos e coligações, para as eleições proporcionais (vereança e deputação estadual, distrital e federal).

1997

A Lei das Eleições (9504/97) determina uma reserva de 30% das candidaturas dos partidos e coligações para cada “sexo”. Essa medida veio acompanhada de uma série de manobras que, combinadas, resultaram em uma retração do percentual de mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados.

2009

Dado o reiterado descumprimento das cotas de gênero pelos partidos, movimentos sociais, pesquisadoras, especialistas e parlamentares fizeram uma mobilização para que o artigo  Art. 10, § 3º da Lei das Eleições fosse alterado. Em lugar de apenas reservar, os partidos deveriam preencher os 30% de vagas destinadas ao sexo oposto. O binarismo sugere que esse percentual se aplicaria às mulheres e, embora o debate sobre identidade de gênero já tenha avançado bastante desde então, a redação permanece a mesma.

No mesmo ano, foi aprovada uma “minirreforma” eleitoral (Lei 12.034/2009), que estabeleceu a aplicação de pelo menos 5% dos recursos do Fundo Partidário em medidas de promoção de quadros políticos femininos.

2011

O Deputado Federal Luiz Alberto (PT-BA) apresentou a Proposta de Emenda a Constituição 116/2011, que previa a reserva de vagas para parlamentares negros na Câmara Federal, nas Assembleias Legislativas dos estados e nas Câmaras Municipais por cinco legislaturas.

A PEC das Cadeiras Negras, como ficou conhecida, traz em sua redação duas contribuições originais: a primeira diz respeito à reserva de vagas, ou seja, de cadeiras, nos parlamentos. A segunda é a identidade étnico-racial, até então ausente dos debates sobre ações afirmativas eleitorais. Os partidos não estariam obrigados apenas a lançar candidaturas negras, mas a trabalhar para que fossem eleitas.

Infelizmente, a proposta foi arquivada ao final da legislatura.

2014

Os Tribunais Regionais Eleitorais passaram a se contrapor a listas partidárias que não tivessem pelo menos 30% de candidaturas de mulheres. Também foi o primeiro ano em que o preenchimento do quesito raça/cor tornou-se obrigatório.

2015

É aprovada a primeira anistia aos partidos que descumpriram, até aquele ano, as cotas para mulheres. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no entanto, decide que o descumprimento das cotas pode ser considerado como fraude. A questão vai para julgamento no Supremo Tribunal Federal, que corrobora a decisão e promove outras mudanças importantes a respeito do financiamento de campanhas. Uma nova “minirreforma” é aprovada, (Lei 13.165/2015), com a previsão de uma multa equivalente a 12,5% (um valor irrisório) dos 5% previstos para mulheres no Fundo Partidário.

No mesmo ano, foi apresentada no Senado a PEC 23, para determinar a paridade de gêneros nos assentos de Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, Câmara Legislativa do Distrito Federal e Câmaras Municipais. A proposta tramitou na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, recebeu várias emendas, mas acabou arquivada sem ser votada, ao final da legislatura.

2017

Com a mudança nas regras de financiamento, o Congresso Nacional aprova a criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC). Uma vez que não poderiam mais receber doações de pessoas jurídicas, os partidos apostaram na criação de um fundo público sem, contudo, reservar nenhum percentual mínimo para campanhas de mulheres.

2018

Essa omissão em relação ao FEFC não passou despercebida. O TSE ampliou o entendimento em relação à reserva de 30% para contemplar os recursos do FEFC e o horário gratuito de propaganda eleitoral. As ações afirmativas para mulheres passaram a valer para o preenchimento das listas partidárias, para a distribuição dos recursos financeiros e para a propaganda eleitoral gratuita.

2019

Uma nova anistia aos partidos foi aprovada. Os recursos do Fundo Partidário que não foram aplicados a medidas de promoção de quadros femininos poderiam ser utilizados nas eleições de 2020, sem prejuízo por parte das agremiações.

2020

A Deputada Federal Benedita da Silva fez uma consulta ao Tribunal Superior Eleitoral, que confirmou o entendimento de que os recursos do FEFC e o tempo de propaganda eleitoral gratuita deveriam ser proporcionais ao total de candidaturas negras do partido ou da federação partidária. Com o reconhecimento da constitucionalidade da medida pelo STF, o efeito foi imediato, valendo já para as eleições municipais de 2020.

2021

Novo processo de auto anistia para os partidos políticos que, além de descumprir as determinações do TSE, passaram a questionar enfaticamente a própria validade da política de cotas, alegando a dificuldade de preenchimento das vagas, de controle na distribuição dos recursos e fiscalização da propaganda. O TSE publica novas regras e, graças a uma atuação coletiva da sociedade civil e de partidos mais progressistas, a mesma emenda constitucional (EC 111/2021) que anistiava os partidos previa também que, entre 2022 e 2030, os votos em mulheres e pessoas negras teriam peso 2 no cálculo das porções do FEFC e do Fundo Partidário para cada partido.

2022

As ações afirmativas são finalmente constitucionalizadas (EC 117/2022). No entanto, os partidos que as descumpriram até aquele ano são anistiados. Apesar de estar na Constituição, a reserva de 5% do Fundo Partidário e a distribuição proporcional do FEFC ainda estão sujeitas à “autonomia partidária”, isto é, a critérios muitas vezes pouco transparentes, definidos por cada agremiação de forma independente. A EC 117 também não contempla ações afirmativas raciais.

2023

Novas discussões se iniciam no Congresso Nacional com graves ameaças aos direitos eleitorais conquistados por mulheres e negros. Propostas de (mais uma) anistia, de retorno do financiamento empresarial, entre outros retrocessos, são condensadas em um projeto de Novo Código Eleitoral, ainda em tramitação.

2024

Observando os movimentos dos partidos para burlar as ações afirmativas de gênero e raça, o TSE publica resoluções sobre as eleições de 2024 que estabelecem normas e procedimentos para aprimorar a aplicação das medidas de impulsionamento de candidaturas diversas – femininas, negras, indígenas, LGBTQIAP+ etc.

A democracia que queremos

Além dos instrumentos listados, há outros como a Lei de Enfrentamento a Violência Política Contra a Mulher (14.192/2021), a Lei 10.639/1996, e a própria Lei de Cotas – sancionada no governo Dilma Rousseff e que passa por uma atualização neste momento, no Congresso Nacional. São aparatos legais que favorecem a consolidação de direitos de mulheres e pessoas negras. Tais medidas possibilitam uma transformação da realidade de exclusão e opressão que esses grupos sociais experimentam.

Há ainda muito por fazer até que as ações afirmativas alcancem seu potencial pleno de realização. O entendimento do STF sobre a importância das bancas de heteroidentificação como prática complementar à autodeclaração, por exemplo, deveria ser estendido às ações afirmativas eleitorais. Da mesma forma, é preciso que haja um maior compromisso institucional com a garantia dos direitos conquistados, acompanhado de uma concordância generalizada sobre o princípio do não-retrocesso.

O avanço das mulheres negras na política institucional é um fato. O movimento Mulheres Negras Decidem e outras tantas organizações chamam a atenção para o crescimento das mulheres negras como força política e eleitoral há quase uma década.

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O aumento das candidaturas, porém, não é acompanhado pelo aumento do índice de elegibilidade, que é a razão entre candidatas e eleitas. Para eleger mais mulheres negras, é fundamental garantir seu acesso a condições igualitárias de segurança e integridade física e mental, financiamento, propaganda, capital político, tempo de qualidade para a construção de suas campanhas e tudo aquilo que é indispensável para uma candidatura competitiva.

Eleitoras e eleitores têm demonstrado, sua confiança nas mulheres negras. Em 2020, mulheres negras receberam 8,89% dos votos válidos. Nas eleições de 2016 esse percentual foi de 6,20%. O aumento dos votos nominais em mulheres negras nas duas últimas eleições municipais foi de mais de 2,3 milhões de votos – uma quantidade maior do que a que definiu as eleições presidenciais de 2022. Resta evidente, portanto, que as principais barreiras entre as mulheres negras e os gabinetes nos parlamentos estão na institucionalidade.

Para acelerar esse processo de chegada de mais mulheres negras a cargos de poder e decisão, existem cada vez mais iniciativas na sociedade civil, nos governos, na academia, na mídia e no entretenimento. Mas são necessárias medidas legais efetivas que garantam os direitos políticos do maior grupo populacional do país.

O Projeto de Lei de Iniciativa Popular +Mulheres na Política, de autoria de um amplo conjunto de organizações e movimentos da sociedade civil articulada, é a única proposta em debate atualmente que prevê a paridade de gênero com equidade racial.

O texto sugere que, no mínimo, 50% do número de vagas para vereadores, deputados federais, distritais e estaduais sejam preenchidas por representantes femininas, sendo 25% desses 50% para representantes femininas negras. Para avançar no Congresso, o PLIP +Mulheres na Política precisa reunir assinaturas de pelo menos 1% do eleitorado, de cinco estados do país, com pelo menos 0,3% dos eleitores de cada um deles.

Há décadas, mulheres negras têm se colocado na linha de frente da luta contra o autoritarismo, a precarização da vida, as opressões sistêmicas e em defesa do Bem-Viver para todas as pessoas. Eleger mulheres negras é um benefício coletivo. É hora de passarmos da vanguarda da resistência à dianteira do poder, por um novo projeto de país. #MulheresNegrasEleitas.

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