Novos ideais, velhas práticas: paternidade e cuidados no Brasil

Ilustração mostra um homem brincando com uma criança em primeiro plano enquanto uma mulher cozinha em segundo plano
Ilustração: Victória Sacagami/ Gênero e Número

Isadora Vianna Sento-Sé

Em meio ao fortalecimento de uma agenda conservadora, promovida por grupos de direita, que corrobora concepções tradicionais dos papéis de gênero, observamos a simplificação dos discursos sobre as configurações familiares possíveis e o reforço dos estigmas associados a elas.

Nesse sentido, é um tema emergente o envolvimento dos homens no debate sobre redução das desigualdades e participação deles na vida familiar, na divisão de responsabilidades e nos cuidados dos filhos.

Segundo os dados mais recentes do Registro Civil, mais de 100 mil crianças por ano são registradas sem pai. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílio Contínua (PnadC), das 12,7 milhões de famílias monoparentais, mais de 11 milhões (87%) são chefiadas por mulheres.

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Nesse contexto, algumas políticas estratégicas, como a Política Nacional de Cuidados, lançada pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome em 2023, consideram a paternidade e as desigualdades entre homens e mulheres como questões constitutivas.

Para que o envolvimento de homens nos cuidados possa promover mudanças é fundamental que a discussão e as iniciativas relacionadas à valorização da paternidade confluam com a redução da desigualdade de gênero. Iniciativas que valorizem paternidades “positivas”, “saudáveis” e “participativas” sem uma análise crítica das relações de poder e dominação podem ser injustas, recompensando homens por comportamentos que sempre foram esperados das mulheres ou criando um ambiente que legitime ações revanchistas.

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Recentemente, acompanhamos a atleta Flavia Maria de Lima desabafar em suas redes sociais, durante os Jogos Olímpicos de Paris, sobre as alegações de abandono parental que o ex-marido protocola em uma ação pela guarda da filha sempre que ela viaja para competir.

Em um contexto ampliado, assistimos a diversas mulheres denunciarem os parceiros pelo uso da Lei da Alienação Parental como instrumento de assédio judicial em processos de violência doméstica familiar. Essa prática tem gerado uma série de notas técnicas de organizações, como a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que sugere a revogação da lei.

Além das discussões sobre a necessidade de que instituições de Estado incorporem as dimensões do cuidado, a forma como os homens vivem a paternidade e, principalmente, dividem esse trabalho com as parceiras passou a ser um tema fundamental para o debate sobre a redução da penalização da maternidade e para a promoção de relações de gênero mais equânimes.

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O survey internacional Família e Mudanças de Papéis de Gênero, do International Social Survey Programme (ISSP), realizado em 40 países em 2012, propôs perguntas sobre o grau de concordância e de discordância com afirmações que procuravam medir adesão ou afastamento do modelo tradicional de envolvimento de homens e mulheres em trabalhos domésticos e de cuidado, além das horas dedicadas a essas tarefas.

No Brasil, foi feita uma pesquisa inspirada no questionário internacional que nos permite propor uma reflexão sobre como os homens brasileiros vivenciam a paternidade a partir de suas respostas sobre valores e práticas associadas aos cuidados das crianças.

Colocada a afirmação “o trabalho do homem é ganhar dinheiro e o trabalho da mulher é cuidar da casa e da família”, tivemos como resultado a concordância de 36% dos homens brasileiros e 28% das mulheres.  Ao todo, 59% dos homens discordaram da afirmação, o que indica que, discursivamente, a maioria dos homens não está alinhada a valores mais tradicionais.

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Outra dimensão levantada pelo questionário diz respeito à quantidade ideal de filhos. No Brasil, a pesquisa não encontrou nenhum respondente que afirmasse que o ideal é não ter filhos e metade dos respondentes declarou que o melhor é ter dois filhos.

Considerando que as políticas de suporte às famílias devem ajudar as pessoas a alcançar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ao conciliar a paternidade e maternidade com o trabalho remunerado, o survey apontou resultados relevantes.

Quando perguntados sobre quem deveria cuidar das crianças abaixo da idade escolar, 48% dos homens e 51% das mulheres responderam ser a família. Quanto aos custos associados aos cuidados das crianças, 67% dos homens e 58% das mulheres declararam ser também a família responsável, enquanto 27% dos homens e 32% das mulheres declararam que a responsabilidade é das instituições públicas e do Estado. Os dados apontam para a presença da perspectiva “familista” do cuidado, o que converge com a histórica inscrição dessa tarefa ao ambiente doméstico e privado.

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Alguns países, no entanto, passaram a desenvolver políticas públicas de creches e licença parental, reduzindo a penalização da maternidade no mercado de trabalho e estimulando maior igualdade de gênero na divisão dos cuidados das crianças, o que tende a enfatizar a corresponsabilidade no cuidado dos filhos.

A licença-paternidade também pode favorecer a volta ou o ingresso da mãe ao mercado de trabalho formal, reduzindo obstáculos à sua carreira. No ISSP, quando perguntados sobre a manutenção do salário durante a licença-maternidade, homens e mulheres se declararam favoráveis. Entre os respondentes, 56% dos homens e 66% das mulheres consideravam que 120 dias de licença é pouco tempo. No caso da licença-paternidade com manutenção do salário, apenas 4% das mulheres e 3% dos homens se declararam contrários.

Podemos concluir que os homens brasileiros desejam ter filhos e não acreditam que há uma divisão clara na qual eles são provedores e as mulheres cuidadoras, o que sugere que, para a maioria deles, existe um modelo familiar com algum grau de divisão e intercâmbio de tarefas, reconhecendo, inclusive, a importância da licença-paternidade. Essas informações dão algumas pistas sobre as ideias de família e paternidade desses homens. Então, o que podemos dizer sobre as formas como os homens cuidam dos filhos?

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Na rodada brasileira da pesquisa, foram feitas perguntas específicas sobre as atividades relacionadas aos cuidados das crianças e sobre quem seriam os responsáveis por elas. Quando perguntados sobre quem geralmente veste e dá banho nas crianças, 51% dos homens responderam serem sempre/geralmente as parceiras, 29% declararam dividir as tarefas e apenas 10% disseram ser geralmente eles os responsáveis.

O mesmo padrão se repete quando perguntados sobre quem alimenta as crianças: 51% dos homens responderam serem sempre/geralmente as parceiras, 29% disseram ser os dois juntos e apenas 10% alegaram ser geralmente eles próprios.

Para ajudar nas atividades da escola, a proporção de divisão aumenta. Do total de homens, 31% declararam realizar as atividades junto com as companheiras e 19% assumiram que são geralmente elas as responsáveis. Ainda, 75% dos homens declararam levar as crianças ao médico junto com a parceira. Pegar na escola foi a atividade distribuída de forma mais equilibrada: 15% dos homens declararam ser geralmente eles os responsáveis, 15% declararam dividir com as parceiras e 19% disseram ser as parceiras as principais responsáveis.

Por último, quando perguntados sobre com que frequência passeiam com os filhos, 66% dos homens responderam “sempre/quase sempre”, 18% às vezes e 17%, “nunca/quase nunca”.

Sobre o número de horas semanais dedicadas aos cuidados dos filhos, a diferença entre mulheres e homens foi de mais de vinte horas de sobrecarga para elas. Ou seja, ainda que retoricamente os homens queiram ter um papel mais ativo no cuidado dos filhos, recusando modelos tradicionais, isso não é verificado nas percepções das ações cotidianas deles próprios.

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É possível, portanto, pensar que o ideal do pai provedor e da mãe cuidadora é desafiado por alternativas ou “amenizado” pelo envolvimento dos pais nas atividades lúdicas ou naquelas relacionadas ao desempenho dos filhos na escola, ações que não compõem os cuidados mais basilares, como alimentação e higiene. O trabalho “pesado” do cuidado, embora possa ser diluído entre creches, escolas, babás e os próprios homens, é ainda substantivamente uma responsabilidade das mães.

Políticas públicas que estimulem a conciliação entre trabalho remunerado e trabalho de cuidados, associadas àquelas que “coletivizam” o cuidado, como creches e pré-escolas, são empreendimentos complementares para a promoção de configurações mais igualitárias no interior das famílias.

Contudo, no esteio das recentes reformas trabalhistas, que constituíram a agenda política dos últimos anos, observamos a fragilização dos mecanismos de proteção, a flexibilização das relações de trabalho e a individualização de riscos, que resultam no aumento da informalidade e na prevalência do modelo que valoriza o “empreendedorismo”, em detrimento do assalariamento. Daí, torna-se ainda mais importante refletir sobre os mecanismos de proteção social que impactam a vida das pessoas e oferecem níveis mais altos de suporte às famílias.

Nas Teias do Cuidado, é possível encontrar entrelaçados diferentes ideais de modelos familiares, refletir sobre até que ponto estão relacionados a indicadores de igualdade de gênero e modernização em nível nacional e internacional, localizar semelhanças e diferenças entre grupos de sociedades – com foco em quais ideais representam alternativas conservadoras e progressistas -, bem como as transformações nessas dinâmicas ao longo dos anos.

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Isadora Vianna Sento-Sé

Economista formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC - Rio) e doutora em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS - UERJ). Pesquisadora de Pós-Doutorado no Núcleo de Estudos das Desigualdades Contemporâneas e Relações de Gênero (NUDERG - UERJ) e Pesquisadora Adjunta no Núcleo de Pesquisa em Gênero Raça e Etnia da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (NUPEGRE - EMERJ)

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